Escrito por: Dr. Marcelo Mester, 
1º secretário adjunto da ABCG

A radiação ionizante, utilizada na radioterapia de tumores, mata as células quando há oxigênio disponível no intracelular, uma vez que radicais livres de oxigênio formados pela passagem dos raios ionizantes causam danos ao DNA, impedindo a replicação celular. Seus efeitos colaterais decorrem da energia que foge da colimação focada no tumor e se dispersa nos tecidos ou órgãos adjacentes. Outro efeito indesejado é a variação da energia desde sua entrada até o cerne do tumor, se sua precisão não for ideal para a morte tumoral-alvo. Além disto, a energia de saída poderá, se for maior que a desejada, lesar na profundidade outros tecidos ou órgãos a serem preservados.

Os tecidos mais sensíveis aos efeitos da radiação ionizante são os que contém maior quantidade de células com altas taxas de replicação celular, i.e. as células totipotentes, ou células-tronco. Assim, a radioterapia abdominal sempre teve como calcanhar de Aquiles os intestinos, uma vez que estes estão sempre em constante replicação e reposição celular (das criptas ao topo dos vilos). Outros órgãos no topo da lista são a medula óssea e as gônadas. O objetivo principal da radioterapia, semelhantemente à quimioterapia, é obviamente matar as células tumorais seletivamente e ao mesmo tempo preservar as células saudáveis normais. Donde terem sido desenvolvidas ao longo das últimas décadas tecnologias cada vez mais precisas na colimação dos raios, bem como fontes alternativas de energias (aos raios-X originais), para mais baixas relações dano/benefício.

Neste sentido, a irradiação por feixe de prótons foi idealizada para se obter maior precisão e menor dano colateral no tratamento de tumores. Para isso é necessário um acelerador de partículas, normalmente um cíclotron isócrono (síncroton), com auxílio de eletromagnetos supercondutores tais como os utilizados nos aparelhos de ressonância magnética modernos. A eficiência dos feixes de prótons caracteriza-se pela sua baixa energia de entrada, menor dispersão por serem partículas de alta massa, e término mais preciso da extensão longitudinal do feixe de raios com maior pico de energia de saída no final dos raios (existe uma maximização da energia nos milímetros finais dos feixes). Este efeito final é chamado de pico de Bragg (Bragg peak), e o cálculo da energia final obtida no cerne do tumor (e nunca além deste) é feita pela somatória das energias finais dos vários feixes (spread-out Bragg peak, ou SOBP, medido em eletronvolts - eV). Em suma, esta forma de radiação teria uma penetração mais precisa, e menor dano a tecidos vizinhos seja lateralmente, seja na profundidade.

Os primeiros experimentos com a utilização dos feixes de prótons na medicina vieram do Harvard Cyclotron Laboratory (HCL) a partir de 1946. Ulteriormente o HCL e o Massachusetts General Hospital (MGH), em Boston, iniciaram um projeto e trataram pacientes desde 1961. Seus principais beneficiários eram os pacientes com tumores cerebrais e os pacientes pediátricos. Na época do meu fellowship em cirurgia oncológica no MGH (1987- 89), quando realizava minhas pesquisas em radioterapia intestinal nesta instituição, testemunhei o desenvolvimento do Northeast Proton Therapy Center, no MGH, liderado pelo professor Titular e Chefe de Departamento de Radioterapia, Prof. Herman Suit, um dos pioneiros mundiais na radiação fracionada de tumores. Anos depois (2001), criou-se o Francis H. Burr Proton Beam Therapy Center, no MGH, que magnificou tremendamente o atendimento de pacientes por esta tecnologia. Mais centros no mundo foram construindo equipamentos e aplicando esta tecnologia, e hoje estima-se que haja cerca de 75 centros de radioterapia por feixe de prótons no mundo, sendo 27 deles nos Estados Unidos da América. Estima-se que mais 41 outros centros estejam sendo construídos na atualidade, e mais de 150.000 pacientes já foram tratados por prótons.

No Brasil, ainda não há, até hoje, algum centro oncológico contendo uma estação de tratamento radioterápico por feixe de prótons.

Os principais canceres tratados pelo feixe de prótons em adultos até agora têm sido tumores do sistema nervoso central (base do crâneo, cordomas ou condrossarcomas paraespinais), melanomas uveais, e sarcomas irressecáveis. Nas crianças, os tumores cerebrais e da base do crâneo, rabdomiossarcomas, neuroblastomas, tumores de Ewing, e carcinomas de cabeça e pescoço, entre outros. Recentemente o espectro de tumores tratáveis por prótons em adultos têm sido ampliado para próstata e alguns tumores gastrointestinais. A tendência observada nas últimas décadas favorecendo tratamento não-cirúrgico para próstata aumentou os casos de radioterapia primária para esta doença, seja por tele- ou braquiterapia. A preservação dos órgãos circundantes à próstata foi melhor realizada pela braquiterapia, ou pela aplicação de radioterapia de intensidade modulada (IMRT, ou Intensity Modulated Radiation Therapy). Compreende-se, portanto, o interesse em utilizar prótons como tratamento primário desta doença. Neste sentido, foi iniciado em 2012 um estudo prospectivo e randomizado de 5 anos, no MGH, em Boston, para comparar os efeitos dos prótons com IMRT para o câncer da próstata, e sua análise está sendo feita agora.

Nos tumores gastrointestinais, estudos começaram a ser realizados recentemente para carcinoma hepatocelular, pâncreas e cárdia-esôfago.

Assim sendo, achamos de interesse para os leitores do site da ABCG, reportar ao menos dois estudos (clinical trials) em andamento sobre o uso de prótons em tumores da cárdia/esôfago. Um deles, em andamento no MGH, Boston, testa os efeitos de FOLFIRINOX e prótons como neo-adjuvância para tumores de estômago e cárdia (Theodore Sunki Hong et al, "A PILOT STUDY OF FOLFIRINOX IN COMBINATION WITH NEOADJUVANT RADIATION FOR GASTRIC AND GE JUNCTION CANCERS). Utilizam 5FU, Oxaliplatina, Irinotecam, Leucovorin, Paclitaxel, Carboplatina, e feixe de prótons.

O outro está sendo realizado no M.D.Anderson Cancer Center, Houston, Texas, tendo o MGH e o National Cancer Institute (NCI) como colaboradores: "PROTON BEAM THERAPY VERSUS INTENSITY MODULATED RADIATION THERAPY TRIAL" aplicados conjuntamente a quimioterapia para canceres de esôfago (espinocelular e adenocarcinoma) e cárdia.

No ano passado (2017), a ANVISA liberou o primeiro equipamento médico de feixe de prótons para ser usado no Brasil (DOU 212, 06/11/2017). Ele é produzido pela empresa Varian Medical Systems, com tradição em equipamentos de radioterapia há muitos anos. A Varian Medical Systems possui sede em Palo Alto, Califórnia e foi a segunda companhia, depois da Hewlett Packard (HP), a ser lançada no Vale do Silício por cientistas e físicos que desenvolveram e construíram o primeiro acelerador linear médico na Universidade de Stanford. A Varian foi uma das primeiras empresas a se associar à Universidade de Stanford para desenvolvimento de pesquisas de alta tecnologia.

Quem sabe agora poderemos iniciar estudos/tratamentos de câncer gastrointestinal por prótons no Brasil.

Fontes:
1. ANVISA
2. https://clinicaltrials.gov/ 
3. https://www.massgeneral.org/cancer/services/treatmentprograms.aspx?id=1441

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